EDITORIAL: Clique aqui e confira a análise de pesquisa realizada pela DARK RADIO
Por Daniel Aghehost
Publicado em 06/08/2025 12:03 • Atualizado 06/08/2025 12:40
NOTAS DO SUBMUNDO - EDITORIAL

Entre o digital e o visceral: o que realmente move o consumo musical no underground em 2025?

 

O tempo corre, os formatos mudam, as tecnologias se reinventam. Mas, no subterrâneo da indústria musical, há algo que permanece: a pulsação bruta da paixão. O underground — especialmente o do metal extremo — nunca foi apenas sobre música. Foi e ainda é sobre identidade, resistência, estética, ética e, sobretudo, pertencimento. Em 2025, essa chama continua acesa, mas sua forma de queimar parece estar mudando. O que antes era impulso visceral, agora se equilibra entre cliques e caixas, entre algoritmos e encartes.

Mas como, afinal, os fãs do underground estão consumindo música hoje? A recente enquete promovida pela DARK RADIO nos ajuda a decifrar essa nova cartografia da escuta. Mais de 4.600 pessoas participaram, revelando não apenas comportamentos, mas dilemas e transformações internas. A pergunta era direta: “Você ainda compra material físico (CD, vinil, fita cassete)? E de quem?”. As respostas, no entanto, abrem espaço para reflexões mais profundas do que os dados, à primeira vista, sugerem.

 

 

  1. Um cenário multifacetado: os quatro arquétipos da escuta underground

 

A divisão dos votos revela quatro perfis que convivem no mesmo ecossistema:

  • 32% afirmam que ainda compram material físico de vez em quando, mas consomem quase tudo via streaming;
  • 27% não compram mais nada físico, usando apenas plataformas digitais;
  • 23% compram principalmente de bandas novas e independentes;
  • 18% compram apenas de bandas consagradas, que acompanham há anos.

Essa multiplicidade de perfis reflete o que Bauman (2001) definiu como sociedade líquida: os vínculos tornam-se mais frágeis, efêmeros, com identidades em constante mutação. O consumo musical, neste contexto, deixa de ser uma prática fixa e se torna fluido, adaptável às tecnologias, aos hábitos e aos estados emocionais do indivíduo.

Ao mesmo tempo, segundo Anthony Giddens (1991), vivemos uma era de reflexividade, em que o indivíduo constantemente reavalia suas ações e escolhas com base nas mudanças do mundo. O fato de uma parte significativa dos respondentes ainda valorizar o material físico, mesmo que não seja prioridade, pode ser visto como uma forma de reafirmação identitária frente à dissolução digital. A compra de um disco, nesse sentido, não é apenas uma transação econômica, mas uma reafirmação do self musical.

 

  1. Streaming: o prazer do agora, a ameaça do depois

 

O domínio do streaming está alinhado com o que Byung-Chul Han (2017) descreve como a "sociedade da transparência" — uma era onde tudo deve ser acessível, imediato e fluido. O streaming representa isso com perfeição: um catálogo infinito de sons, a qualquer momento, em qualquer lugar. Mas a abundância, lembra Han, gera também um tipo específico de cansaço. A fadiga da escolha constante, do excesso de informação, da perda de profundidade.

O filósofo sul-coreano nos alerta para o risco de um mundo sem negatividade, onde a experiência é sempre mediada pela positividade do clique. O prazer do agora, proporcionado pelo streaming, pode obscurecer a experiência mais densa, ritualística, do ouvir concentrado. Nesse sentido, o zapping digital distancia o ouvinte da imersão estética — e isso repercute diretamente na relação que temos com a música.

Walter Benjamin (1936), em seu ensaio sobre a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, já denunciava a perda da "aura" da obra artística diante da facilidade de reprodução. O streaming, com seus algoritmos impessoais, remove da experiência musical o contexto, o corpo, o espaço. Tudo se reduz à escuta solitária e fragmentada.

 

  1. O físico como resistência afetiva e política

 

Os 23% que compram de bandas novas e independentes apontam para uma reação contra essa desmaterialização da experiência estética. Pierre Bourdieu (1984), ao estudar o gosto musical, demonstrou que as escolhas culturais estão profundamente imbricadas nas estruturas de poder e distinção social. Comprar um disco de uma banda nova, ou de uma completamente desconhecida, é também afirmar um capital simbólico, um lugar específico na hierarquia dos gostos.

Mais do que isso, é um gesto de resistência. Alain Touraine (1992) destacou que os movimentos sociais contemporâneos se constroem a partir da defesa da identidade frente à globalização e homogeneização cultural. O consumo de música underground, nesse cenário, pode ser lido como um pequeno ato político. O sujeito não apenas consome, mas apoia a produção cultural que escapa ao mainstream, sustentando financeiramente aquilo que é feito à margem.

Como aponta o sociólogo argentino Néstor García Canclini (1995), a cultura contemporânea oscila entre o consumo e a cidadania. Comprar um disco de uma banda independente é, nesse sentido, uma forma de cidadania estética. É participar ativamente da manutenção de uma cena, de uma memória coletiva, de um imaginário partilhado.

 

  1. O colecionismo afetivo e o perigo da fossilização

 

Os 18% que compram apenas de bandas consagradas evocam o conceito de "memória coletiva" de Maurice Halbwachs (1990). Ao adquirir novos álbuns de bandas históricas, o sujeito reforça uma ligação com o passado — não apenas o passado da banda, mas o seu próprio. Trata-se de um consumo ritualizado, que reativa afetos, lembranças, símbolos. Ouvir um novo disco da CANDLEMASS pode significar reviver o primeiro contato com o doom metal, com a adolescência, com um momento específico da vida.

No entanto, como lembra Edgar Morin (2002), a memória também corre o risco de se tornar prisão. Quando o sujeito se fixa no consumo exclusivo do que lhe é familiar, ele se protege da diferença. O novo passa a ser uma ameaça à identidade consolidada. E o underground, que sempre foi território de experimentação e risco, se vê ameaçado pela cristalização dos gostos.

 

  1. A mutação cultural: do objeto ao acesso

 

A lógica do streaming é fruto de uma mutação cultural mais ampla. Segundo Manuel Castells (1999), vivemos na era da informação, em que o valor está mais no acesso do que na posse. A música torna-se serviço, fluxo, código. E nesse novo paradigma, a materialidade do disco parece obsoleta.

No entanto, como nos alerta Naomi Klein (2000), essa desmaterialização esconde formas de exploração mais sutis. O trabalho artístico é precarizado, os algoritmos definem o que deve ser ouvido, e os lucros se concentram nas plataformas. A cena underground, ao depender exclusivamente do streaming, corre o risco de desaparecer em meio ao ruído digital.

 

  1. Curadoria e escuta profunda em tempos de excesso

 

É nesse contexto que a curadoria se torna essencial. Como apontou Susan Sontag (1966), vivemos uma "estética da superexposição", onde tudo é visível, mas nada é realmente visto. O papel de veículos voltados ao underground, como a DARK RADIO, é romper com essa lógica, oferecendo não apenas conteúdo, mas mediação. Apresentar um disco, contextualizar uma demo-tape, entrevistar um artista — tudo isso são formas de devolver densidade à experiência da escuta.

Michel Maffesoli (1996) fala da importância das "tribos urbanas" como formas de resistência à massificação. A cena underground é uma dessas tribos, e sua vitalidade depende da criação de vínculos, de laços simbólicos, de pertença. A curadoria, nesse sentido, é também um gesto de cuidado com a comunidade.

 

  1. Conclusão: ouvir, sustentar, pertencer

 

No fim das contas, a pesquisa da DARK RADIO revela muito mais do que números. Ela nos convida a pensar sobre nossas práticas culturais, nossos vínculos afetivos, nossas escolhas políticas. O consumo de música não é neutro. Ele constrói mundos.

Se quisermos que o underground continue existindo, precisamos ser mais do que ouvintes. Precisamos ser cúmplices. Sustentar não apenas com palavras, mas com gestos concretos. Comprar discos, sim. Mas também compartilhar, divulgar, comentar, participar.

Como disse Theodor Adorno (1944), a arte verdadeira é aquela que resiste à reificação. O metal underground, com toda sua fúria e beleza, é uma forma de arte que ainda resiste. Mas para continuar viva, precisa de nós.


 

Referências bibliográficas

 

ADORNO, Theodor. "Dialética do Esclarecimento". Zahar, 1985.

BAUMAN, Zygmunt. "Modernidade Líquida". Zahar, 2001.

BENJAMIN, Walter. "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica". Brasiliense, 1985.

BOURDIEU, Pierre. "A distinção: crítica social do julgamento". Edusp, 1984.

BYUNG-CHUL HAN. "A Sociedade da Transparência". Vozes, 2017.

CANCLINI, Néstor García. "Consumidores e Cidadãos". Edusp, 1995.

CASTELLS, Manuel. "A sociedade em rede". Paz e Terra, 1999.

GIDDENS, Anthony. "Modernidade e identidade". Unesp, 1991.

HALBWACHS, Maurice. "A memória coletiva". Vértice, 1990.

KLEIN, Naomi. "Sem Logo". Record, 2000.

MAFFESOLI, Michel. "O tempo das tribos". Forense Universitária, 1996.

MORIN, Edgar. "Os sete saberes necessários à educação do futuro". Cortez, 2002.

SONTAG, Susan. "Contra a interpretação". Companhia das Letras, 1987.

TOURAINE, Alain. "Crítica da Modernidade". Vozes, 1992.

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