VINTE ANOS DE CROMANON
NOTAS DO SUBMUNDO - EDITORIAL
Publicado em 03/01/2025

VINTE ANOS DE CROMAÑON

(A BOATE KISS DA ARGENTINA)

 

Anos antes do incêndio da Boate Kiss, em 2013 na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, houve um outro incêndio que tirou a vida de mais de uma centena de jovens

 

 

Em 30 de dezembro de 2004 e a banda Callejeros tinha marcada a sua última apresentação do ano, na casa República Cromañon, em Buenos Aires, na Argentina. A Callejeros estava encerrando um ano muito bom para a banda e neste último show apresentaria o último álbum, lançado alguns meses antes. A banda fazia parte do chamado Rock Barrial, um movimento do rock argentino do final da década de 1980, onde as letras das músicas abordam temas relacionados às experiências e interesses da juventude proletária, falando diretamente com esses jovens, principalmente das classes baixa e média baixa.

 A banda tinha muitos fãs fiéis, que compareciam a quase todas as apresentações, mas ela estava crescendo e o público que compareceu à casa de show nesse dia foi muito maior do que a casa comportava. A capacidade oficial era de 1030 pessoas, mas calcula-se que entraram nessa noite cerca de 4.500 pessoas, sendo que alguns relatos chegavam a 6.000. Na época era considerado normal os espectadores acenderem sinalizadores, ou outros artifícios pirotécnicos, durante os shows de rock. A apresentação da banda de abertura, ocorreu sem incidentes. A banda principal da noite subiu ao palco logo em seguida e ainda na primeira música uma fagulha atinge o teto do local, mais especificamente, uma meia-sombra feita de poliuretano altamente inflamável que rapidamente se tornou uma bola de fogo e começou a pingar gotas de plástico derretido em cima das pessoas.

 Foi quando o instinto de sobrevivência prevaleceu e aquela multidão tentou acessar as saídas, a principal e a de emergência. Era uma quantidade gigantesca de gente tentando sair por uma porta estreita. Os que se dirigiram à saída de emergência se depararam com uma porta fechada com uma corrente com cadeado. Muitos dos jovens que estavam no fundo da casa de show conseguiu sair rapidamente, sem se dar conta da magnitude do que estava acontecendo lá dentro, mas com o decorrer dos minutos e sem encontrar seus amigos e familiares, resolveram voltar ao local e acabaram ajudando muitas outras pessoas a sair com vida. Essa ajuda foi crucial, já que as primeiras ambulâncias demoraram para chegar ao local, mas elas não eram suficientes para a quantidade de feridos, motoristas de táxis e até ônibus começaram a levar os feridos para os hospitais mais próximos, que também não tinham estrutura para atender a todos os jovens que estavam chegando.

 A investigação do incêndio mostrou inúmeras irregularidades no local, a presença de materiais inflamáveis, as poucas saídas de emergência, falhas estruturais, mas mesmo assim tinha alvará de funcionamento. Após muitos anos e quatro julgamentos, algumas pessoas foram consideradas culpadas pela tragédia, alguns funcionários públicos, os responsáveis do local e até a banda que estava se apresentando no momento do incêndio. A culpabilidade da banda é um tema delicado, que dividiu a opinião pública, algumas pessoas acreditavam que a banda era, sim, uma das responsáveis pela tragédia, enquanto outras inocentavam os músicos, inclusive alegando que os próprios músicos perderam amigos e familiares no incêndio. As sentenças foram consideradas brandas pelos sobreviventes e pelos familiares que perderam alguém nessa noite.

 O incêndio da Cromañon é considerado uma das maiores tragédias não naturais da Argentina, provocando a morte de 194 pessoas, calcula-se que cerca de 30% desse número seja de pessoas que conseguiram sair e voltaram para ajudar outros jovens, e pelo menos 1.432 feridos. A maioria dos espectadores estavam na casa dos 20 anos, eram estudantes e trabalhadores, mas na busca de um culpado, esses jovens foram estigmatizados, pintados como os marginais que ouviam rock e que viviam a tríade “Sexo, drogas e rock’n’roll”. Apenas 20 anos depois esses jovens, hoje adultos, conseguiram que o poder público disponibilizasse um auxílio vitalício para custear os gastos com as sequelas físicas e psicológicas que muitos deles ainda carregam.

 

Fernanda Scobino
Apresentadora dos programas Momento Cultural e Dark Radio Delivery

 

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