CANCER - Inverted World
(Peaceville Records // Shinigami Records - Clique aqui para adquirir)
PRIMEIRAS IMPRESSÕES
Sete anos separam “Shadow Gripped” do recém-lançado “Inverted World” (Peaceville Records), novo capítulo na trajetória da lendária banda britânica CANCER. Sete anos, várias mudanças e uma pergunta inevitável: ainda há combustível criativo na máquina enferrujada do death metal inglês? A resposta, embora não seja uma explosão, vem na forma de um disco coeso, sombrio e brutal, que olha para trás com reverência, mas sem repetir-se de forma desnecessária. Com uma formação quase totalmente renovada e uma base operacional agora em Madrid, a CANCER retorna das sombras com uma obra que, mesmo longe da genialidade de “Death Shall Rise” (1991), mostra uma banda confortável em sua própria pele — envelhecida, sim, mas com algo a dizer.
A primeira audição de “Inverted World” revela, antes de tudo, um compromisso com o “old school death metal”. Nada aqui soa moderno ou pretensamente técnico. Não há espaço para modismos ou extravagâncias. A CANCER permanece fiel à linguagem que ajudou a codificar nos anos 90, misturando riffs sólidos de death/thrash, atmosferas opressivas e vocais que ressoam como lamentos de um túmulo reaberto. John Walker, o único membro remanescente da formação original, assume novamente as rédeas da composição e conduz o ouvinte por 44 minutos de peso, suor e decadência. Ao seu lado, a nova trinca espanhola — Daniel Maganto (baixo), Gabriel Valcázar (bateria) e Robert Navajas (guitarra solo) — forma uma base técnica e robusta, que sustenta com competência as intenções criativas de Walker.
A abertura com “Enter the Gates” é certeira. Um riff sombrio e serpenteante abre caminho para uma marcha lenta e ameaçadora, onde Walker urra com autoridade sobre a inevitabilidade da morte e a perversão humana. A música cresce sem pressa, alternando entre trechos cadenciados e explosões breves de violência. É um início que evoca um certo ar ritualístico, como se o ouvinte estivesse prestes a cruzar um portal — e, de certa forma, está mesmo. A CANCER convida para uma jornada por um mundo invertido, onde a razão falha e o instinto predador assumem o controle.
Na sequência, “Until They Died” mostra o lado mais elaborado do Cancer. Começando com uma introdução soturna e ritmada, a música progride como um animal em marcha lenta, até desatar em passagens mais rápidas que remetem ao CANNIBAL CORPSE em seus momentos menos frenéticos. O refrão é um dos mais marcantes do álbum, e o solo novamente mostra o bom gosto de Navajas ao construir linhas melódicas dentro de uma estética estritamente macabra. É, possivelmente, o ponto alto do álbum — a junção perfeita entre atmosfera, brutalidade e composição envolvente.
Logo em seguida, a faixa-título “Inverted World” mergulha em um clima ainda mais opressivo. A estrutura é quase circular, com riffs que se entrelaçam em espirais descendentes e uma bateria que martela com precisão sombria. Navajas brilha no solo, adicionando camadas dissonantes e melodias retorcidas que lembram o trabalho de James Murphy nos anos 90. A letra sugere uma distopia onde os valores foram corrompidos até a medula — uma crítica velada à era da desinformação, da violência banalizada e do niilismo disfarçado de progresso. Ainda que não seja uma das faixas mais memoráveis melodicamente, seu peso e densidade emocional são difíceis de ignorar.
“39 Bodies” mantém o nível com um groove pulsante que remete ao death metal sueco do meio dos anos 90, especialmente ENTOMBED. O baixo de Maganto aparece com destaque, adicionando peso às estrofes que relatam um massacre como se fosse um estudo anatômico. Walker vocifera com frieza cirúrgica, e a repetição intencional de certas estruturas cria um efeito hipnótico que reflete bem o horror da banalidade do mal. A música soa como um filme de terror contado do ponto de vista do algoz — desconfortável, mas fascinante.
“Test Site” vem como um respiro necessário. Mais rápida e com riffs angulosos, ela é a faixa mais próxima do thrash metal dentro do disco. A estrutura lembra bandas como CORONER ou VOIVOD, e há uma leve dose de dissonância que moderniza, ainda que sutilmente, o material. A letra sugere um experimento fracassado, um colapso ético em nome do avanço tecnológico, e a música acompanha essa narrativa com viradas súbitas e grooves nervosos. É curta, precisa e energética — uma das faixas que mais deve funcionar ao vivo.
“Amputate”, escolhida como single, aposta em uma pegada mais direta. O riff principal é simples, mas eficiente, e a estrutura remete a um death metal de linha dura, com ecos de JUNGLE ROT e DEICIDE. A letra, inspirada em atrocidades coloniais, não poupa imagens fortes, e a banda consegue equilibrar bem a brutalidade do tema com uma execução seca, sem floreios. Há quem critique essa faixa por soar genérica em alguns momentos, mas seu papel como âncora agressiva do disco é inegável.
“When Killing Isn’t Murder” desacelera novamente e traz um início quase atmosférico, com guitarras arrastadas e melodias em camadas. A construção lenta da música culmina em um refrão pesado e uma seção instrumental que flerta com o doom. Aqui, a CANCER se permite experimentar mais, com harmonias e efeitos de ambiência que conferem profundidade à faixa. O resultado é uma canção que transita entre o lirismo sombrio e a brutalidade, mostrando que mesmo uma banda com DNA tão rígido pode encontrar espaços de expansão.
“Jesus for Eugenics” é a mais ousada do álbum. Começa com violões e vocais sussurrados, criando uma tensão crescente que explode em uma avalanche sônica perturbadora. A letra aborda a perversão da religião como ferramenta de controle biopolítico, e a música acompanha esse desconforto com arranjos instáveis e uma estrutura que beira o caos. É o momento mais próximo do experimentalismo dentro de “Inverted World”, e funciona como uma catarse antes do encerramento.
E esse encerramento vem com “Corrosive”, uma faixa direta, seca e sem rodeios. Com pouco mais de três minutos, ela resume bem o espírito do disco: riffs ganchudos, letra afiada, ritmo firme. O solo final traz uma melodia quase bluesy, encerrando o álbum com um toque agridoce. Não é um gran finale épico, mas é eficaz em fechar o ciclo com firmeza.
VEREDITO
“Inverted World” não é um álbum revolucionário. Tampouco pretende ser. É um disco que caminha com segurança sobre trilhas já trilhadas, mas que consegue, aqui e ali, cavar pequenos desvios, buscar texturas, repensar fórmulas. A ausência de momentos realmente inovadores é compensada por uma consistência que poucas bandas veteranas conseguem manter. John Walker continua sendo o centro de gravidade da CANCER, e mesmo que sua voz careça de variação em alguns momentos, ainda carrega o peso necessário para sustentar esse mundo invertido que ele nos apresenta.
Talvez “Inverted World” não vá figurar nas listas de melhores do ano para os ouvintes que buscam inovação ou extremos técnicos. Mas para os que valorizam uma boa dose de brutalidade honesta, com riffs bem colocados, atmosferas carregadas e um senso de identidade intacto, este é um disco que vale a pena ser ouvido — e sentido. No fim, a banda permanece fiel ao seu nome: incurável, persistente e sempre à espreita.
Se o mundo está mesmo de cabeça para baixo, que pelo menos a trilha sonora venha de uma banda que sabe navegar na escuridão. “Inverted World” é exatamente isso: um espelho deformado da realidade — pesado, hostil e, paradoxalmente, reconfortante para quem encontra na música extrema um abrigo contra o absurdo.
7.5/10
(Daniel Aghehost)
TRACK LIST
1. Enter the Gates
2. Until they Died
3. Inverted World
4. 39 Bodies
5. Test Site
6. Amputate
7. When Killing Isn't Murder
8. Covert Operations
9. Jesus for Eugenics
10. Corrosive