HATE - Bellum Regiis
(Metal Blade Records)
PRIMEIRAS IMPRESSÕES
Há bandas que, com o passar dos anos, vão se moldando às tendências, buscando novas estéticas, revendo direções e redimensionando sua essência. E há outras que, como colossos imutáveis, seguem seu curso próprio, forjando sua identidade com firmeza quase ritualística. A HATE, veterana instituição do death/black metal polonês, é um desses pilares que, ao longo de três décadas, construiu um universo sonoro particular, intransigente e cada vez mais magnético. Em “Bellum Regiis”, seu décimo terceiro álbum de estúdio, lançado pela Metal Blade Records, a banda aprofunda ainda mais sua proposta estética – ao mesmo tempo rígida e mutante – e entrega um dos discos mais densos e imponentes de sua discografia recente.
Produzido com um requinte que equilibra crueza e grandiosidade, “Bellum Regiis” exala um clima ritualístico que se impõe desde os primeiros segundos. As atmosferas são carregadas de simbolismo, e o lirismo explora com vigor mitologias eslavas, imagens de guerra sagrada, transcendência espiritual e o eterno ciclo de ascensão e queda. A musicalidade, por sua vez, continua sendo uma amálgama brutal entre death e black metal, mas com elementos sinfônicos e melódicos ainda mais evidentes, resultando em composições multifacetadas, que variam entre o furor bélico e a contemplação cósmica.
A abertura com a faixa-título, “Bellum Regiis”, já revela a ambição do álbum. Com mais de seis minutos, a canção é um épico construído em camadas, iniciando com guitarras limpas e vocais femininos etéreos (à cargo de Eliza Sacharczuk – famosa professora de canto polonesa) que logo cedem lugar a uma muralha de riffs cortantes, blast beats avassaladores (o trabaho de Nar-Sil na bateria beira o absurdo!) e os urros cavernosos de Adam the First Sinner (ou ATF Sinner -= aqui assinado). A estrutura alterna entre passagens melódicas e ataques impiedosos, dando a impressão de um campo de batalha onde beleza e destruição coexistem. A letra invoca a divindade eslava Veles e mescla imagens cósmicas e mitológicas com visões apocalípticas, como se narrasse o colapso de um império sagrado. É uma introdução de tirar o fôlego, que sintetiza bem o espírito do disco.
Na sequência, “Iphigenia” continua a epopeia lírica e sonora. Baseada no mito grego da filha de Agamenon, a música transforma o sacrifício da heroína em um símbolo de entrega à causa maior – uma metáfora que ecoa o conceito de guerra dos reis. Musicalmente, a faixa se destaca pela combinação de guitarras dobradas que criam texturas hipnóticas, além de refrãos grandiosos e atmosferas que remetem black metal sinfônico em seu aspecto mais sombrio. Os vocais femininos retornam, não como mero adorno, mas como contraponto lírico e dramático, elevando o clima trágico da narrativa. Ao final, a faixa se encerra com ares cerimoniais, deixando a impressão de um sacrifício consumado.
“The Vanguard” é talvez uma das mais marcantes do disco. De andamento acelerado, mas com uma melodia principal fortemente inspirada, a música aposta em contrastes dinâmicos que capturam o ouvinte do início ao fim. A letra clama por uma vanguarda guerreira sem fé nem templo, com versos que evocam constelações e mitologias esquecidas. Os riffs, ora furiosos, ora melódicos, alternam-se com precisão (méritos para a dupla ATF Sinner e Domin), e o refrão, mesmo envolto em caos, é de uma beleza melancólica surpreendente. Destaque para os momentos em que as guitarras parecem “chorar” sob a tempestade rítmica criada pelo baterista Nar-Sil – técnica e emoção em perfeita simbiose.
Com “A Ghost of Lost Delight”, a banda desacelera o ritmo, mas não perde intensidade. Trata-se de uma peça atmosférica, longa e cheia de transições, que se destaca pelo seu clima quase meditativo. A letra é uma ode aos espíritos que se perderam no tempo – fantasmas de um prazer esquecido que agora buscam redenção. A música cresce aos poucos, com riffs dissonantes que vão ganhando corpo, até atingir seu clímax em meio a vocalizações etéreas e um solo de guitarra carregado de sentimento. Aqui, a HATE mostra que sua brutalidade não é apenas física – é também existencial.
“Rite of Triglav” serve como interlúdio instrumental, com pouco mais de um minuto de duração. Com tambores tribais, vocalizações ritualísticas e uma aura mística, prepara o terreno para a faixa seguinte e reforça o tom cerimonial do álbum. É como se estivéssemos sendo conduzidos a um templo ancestral, onde o próximo rito irá se desenrolar.
“Perun Rising”, que surge em seguida, é uma das canções mais enérgicas e cativantes do disco. O início com guitarras graves e arranjos orquestrais cria um clima de expectativa, que logo é explodido em uma sequência de riffs brutais e vocais que beiram a possessão. A letra celebra o renascimento do deus eslavo Perun, símbolo de justiça e trovão, como força restauradora diante da corrupção dos impérios. A alternância entre momentos introspectivos e explosões caóticas é extremamente bem executada, dando à faixa uma estrutura que flerta com o progressivo. O final, com sua grandiloquência quase cinematográfica, é arrebatador.
Em “Alfa Inferi Goddess of War”, o quarteto entrega uma faixa que combina fúria e sofisticação. A melodia principal, envolta em tons sombrios, conduz uma composição que remete à figura de uma deusa da guerra – selvagem, incontrolável, sedutora. A canção é construída em torno de riffs entrecortados, que lembram as fases mais melódicas da grega ROTTING CHRIST, mas com um peso que só a HATE sabe imprimir. Os vocais narram uma dança macabra entre morte e transcendência, onde o corpo é ofertado como forma de libertação. Uma canção que certamente funcionará de forma catártica ao vivo. “Prophet of Arkhen” é outro ponto alto do álbum, tanto em termos líricos quanto musicais. A faixa retoma o universo mítico apresentado em álbuns anteriores, evocando o retorno de um profeta que traz consigo o conhecimento perdido. O instrumental é marcado por grooves densos, linhas de baixo pulsantes e uma bateria que alterna entre cadência e frenesi. A letra é quase uma invocação, clamando por revelações e queimando as palavras do passado para abrir caminho à iluminação. É uma canção que fala de morte e renascimento espiritual, e faz isso com intensidade rara.
O encerramento com “Ageless Harp of Devilry” é tudo o que se poderia esperar de um “grand finale”. Aqui, a banda recorre a todos os elementos construídos ao longo do disco – riffs dissonantes, passagens melódicas, vocalizações proféticas e uma produção que transforma cada detalhe em um golpe emocional. A letra fala de poder eterno, de uma harpa que embala a dança dos tempos em ciclos de destruição e renascimento. O instrumental é denso, com guitarras que se entrelaçam em uma espiral descendente, enquanto o vocal soa como um cântico de despedida. Uma faixa épica, sombria e repleta de camadas simbólicas, que finaliza o álbum de forma absolutamente coerente.
VEREDITO
“Bellum Regiis” é, sem dúvida, um dos álbuns mais ambiciosos da HATE. Ele marca um ponto de equilíbrio entre a brutalidade que sempre definiu a banda e uma sofisticação composicional que vem sendo desenvolvida desde álbuns como “Solarflesh” (2013) e “Auric Gates of Veles” (2019).
Há aqui uma densidade lírica incomum, com referências mitológicas, filosóficas e existenciais que convidam à escuta atenta. Musicalmente, a produção é impecável: cada instrumento ocupa seu espaço, cada transição é pensada, cada clímax é construído com precisão quase cirúrgica.
Em vez de reinventar a roda, a polonesa HATE opta por polir ainda mais a engrenagem que vem girando com consistência há mais de 30 anos. “Bellum Regiis” não é apenas um novo capítulo – é a reafirmação de uma identidade artística sólida, que resiste ao tempo como um monólito de sombras e fogo.
Para quem acompanha a trajetória da banda, o álbum é mais um triunfo. Para os que ainda não conhecem, é um convite à guerra – uma guerra interior, espiritual, mítica. Uma guerra de reis.
8.5/10
(Daniel Aghehost)
TRACK LIST
1. Bellum Regiis
2. Iphigenia
3. The Vanguard
4. A Ghost of Lost Delight
5. Rite of Triglav
6. Perun Rising
7. Alfa Inferi Goddess of War
8. Prophet of Arkhen
9. Ageless Harp of Devilry