PRIMEIRAS IMPRESSÕES: CULT OF FIRE - The One, Who is Made of Smoke (2025 - Beyond Eyes)
Por Daniel Aghehost
Publicado em 07/05/2025 10:14 • Atualizado 07/05/2025 10:15
Resenhas

CULT OF FIRE - The One, Who is Made of Smoke 

(Beyond Eyes Productions)

 

PRIMEIRAS IMPRESSÕES

Com um legado marcado por ousadia estética e transcendência temática, a CULT OF FIRE sempre desafiou os limites tradicionais do black metal. E em seu novo álbum, “The One, Who Is Made of Smoke”, o grupo tcheco nos entrega um trabalho que é ao mesmo tempo visceral e etéreo — um rito sonoro dedicado à deusa Mahavidya Dhumavati e às viúvas do mundo. Nesta obra conceitual de sete faixas e cerca de 38 minutos, o guitarrista e mentor Vladimír Pavelka conduz uma jornada espiritual que reflete luto, transformação e renascimento, traduzindo emoções humanas profundas em camadas instrumentais ricas, envolventes e simbólicas.

“The One, Who Is Made of Smoke” é um álbum que se aprofunda em narrativas mitológicas e espirituais do hinduísmo, expandindo a estética sonora que a banda vem desenvolvendo desde मृत्यु का तापसी अनुध्यान (Ascetic Meditation of Death - 2013). Ao invés de apenas evocar o esoterismo de forma superficial, Pavelka mergulha em pesquisas antropológicas e filosóficas que dão à música um lastro de respeito e contemplação religiosa rara no black metal. A viúva que protagoniza o álbum — rejeitada, solitária e desamparada — encontra na deusa Dhumavati não apenas consolo, mas um caminho para sua própria elevação.

A faixa de abertura, “Loss”, já estabelece o tom emocional do disco com sua aura introspectiva e nebulosa. É uma introdução instrumental carregada de texturas ambientais e arranjos melancólicos, que simbolizam o momento inicial de perda e desorientação. A peça não é apenas um prólogo sonoro; ela coloca o ouvinte no mesmo estado de vulnerabilidade e incerteza da protagonista da história.

Na sequência, “Mourning” amplia o espectro emocional ao integrar elementos clássicos do black metal a melodias comoventes. Aqui, a CULT OF FIRE constrói uma espécie de elegia amplificada, onde guitarras atmosféricas se entrelaçam com linhas vocais lamuriosas e um crescendo instrumental que carrega a promessa de transformação. O ponto alto da música ocorre no meio da faixa, quando uma melodia ascendente irrompe com esperança tímida — uma centelha que será retomada e amplificada mais adiante.

“Anger” representa a explosão catártica dessa dor acumulada. É a faixa mais feroz do álbum, mergulhada em fúria incandescente. As guitarras cortantes, os vocais rasgados e os blast beats emergem como uma tempestade devastadora. No entanto, essa violência não é gratuita — ela nasce da frustração, do abandono e da perda. As participações vocais de Anhalas e Natalie Koskinen (SHAPE OF DESPAIR) intensificam a atmosfera ritualística, funcionando quase como invocações em meio ao caos.

A transição para “Dhoom” marca uma virada sonora e narrativa importante. A figura da viúva, após mergulhar em sua dor, começa sua jornada de ascensão espiritual. Musicalmente, isso se reflete em arranjos mais abertos e melodias que evocam alívio e iluminação. O uso de instrumentos tradicionais, como a cítara e o órgão Hammond, cria um senso de transcendência que nos transporta para outras esferas. A dualidade entre agressividade e serenidade se equilibra aqui com maestria — como se a CULT OF FIRE unisse céu e inferno em uma única expressão.A quinta faixa, “Blessing”, é talvez o momento mais emocionalmente reconfortante do álbum. O que começa com riffs densos e melancólicos evolui para uma celebração da libertação espiritual. A leveza das melodias, combinada com uma performance vocal comovente, transforma essa canção em uma benção não apenas para a personagem da narrativa, mas também para o ouvinte. É uma afirmação de que, mesmo nas trevas mais profundas, há espaço para o renascimento.

E então chega “Joy”, a obra-prima absoluta do disco. Aqui, a banda realiza um feito raro no black metal contemporâneo: construir uma música que é ao mesmo tempo intensa, bela e profundamente jubilosa, sem soar piegas ou deslocada. A introdução com o órgão Hammond estabelece um clima quase litúrgico, que logo é invadido por melodias explosivas e eufóricas. Pavelka entrega aqui alguns dos riffs mais memoráveis de sua carreira — linhas que, uma vez ouvidas, ecoam na mente por dias. A estrutura da música é dinâmica, ora acelerada e abrasiva, ora etérea e flutuante. No momento em que tudo desacelera e as notas soam como sinos distantes, o ouvinte é convidado a uma experiência quase mística. Poucas faixas capturam com tanta precisão o êxtase da superação e da reconexão espiritual.

Fechando o ciclo narrativo e musical, temos “There is More to Lose”. Ao contrário da celebração anterior, esta faixa retoma o tom sombrio e meditativo do início do álbum, sugerindo que a jornada espiritual é cíclica, e que cada conquista traz também novas responsabilidades e perdas potenciais. A atmosfera aqui é mais contida, quase contemplativa, e o encerramento em “fade out” sugere que a história está longe de terminar. Musicalmente, a CULT OF FIRE opta por não tentar competir com o clímax de “Joy”, oferecendo em vez disso um epílogo sutil, porém impactante.

Ao longo de “The One, Who Is Made of Smoke”, fica evidente a maturidade composicional de Vladimír Pavelka e sua nova formação. Após a saída dos demais membros originais da banda, Pavelka manteve o cerne criativo da CULT OF FIRE intacto — talvez até mais coeso — com uma visão artística mais pessoal do que nunca (completam a formação o vocalista – e também baixista - Vojtěch Holub, o guitarrista Marek Opatrný e o baterista Peter Heteš). Sua habilidade de integrar elementos do hinduísmo, ambientações orientais e a brutalidade do black metal é algo que poucos conseguiram realizar de forma tão respeitosa e estética. As referências musicais ao folclore tcheco, por meio de harmonias melódicas e uso do idioma local, adicionam ainda mais identidade à obra.

É notável também a forma como a banda abandona convenções do black metal ortodoxo. Em vez de buscar a frieza e o niilismo típicos do estilo, a CULT OF FIRE se volta para um emocionalismo intenso e sincero. O uso de melodias expansivas, vocais femininos, instrumentos tradicionais e estruturas que beiram o post-metal ou mesmo o death metal mais técnico, confere ao álbum um ecletismo surpreendente, sem perder a coesão. 

 

VEREDITO

Em suma, “The One, Who Is Made of Smoke” é mais do que apenas um álbum de black metal. É um rito de passagem. Uma obra de arte que busca no luto o catalisador para uma ascensão espiritual. Cada faixa representa um estágio de transformação — da perda à raiva, da aceitação à beatitude.

A performance da CULT OF FIRE transcende os rótulos de gênero e mergulha o ouvinte em uma experiência que é ao mesmo tempo pessoal e universal. Poucos discos em 2025 terão a coragem de confrontar emoções tão intensas com tamanha sensibilidade, e ainda menos o farão com a beleza e a força que este trabalho carrega.

Com “The One, Who Is Made of Smoke”, a CULT OF FIRE não apenas reafirma sua relevância no cenário extremo — eles se colocam como guardiões de uma espiritualidade sonora que toca o intangível. É um disco para se ouvir de olhos fechados e alma aberta.

E ao final, como a viúva da narrativa, também nós somos transformados.

Sem dúvidas, um dos grandes trabalhos de 2025. 

 

10/10

 

(Daniel Aghehost)

 

 

TRACK LIST

1. Loss

2. Mourning

3. Anger

4. Dhoom

5. Blessing

6. Joy

7. There Is More to Lose

 

 

 

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